Há três anos o Instituto MDT estabeleceu as linhas gerais e, desde então, vem defendendo com mais intensidade a proposta de criação daquilo que estamos chamando de Sistema Único de Mobilidade Urbana (o SUM), que se configuraria como o principal instrumento para a efetivação da regulamentação do transporte como direito social, para avançarmos na construção da política nacional de mobilidade urbana e para a consolidação de um arranjo institucional onde essa política pública viesse a ser organizada sob um modelo sistêmico, assim como ocorre no Sistema Único de Saúde (SUS) e no Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
Enquanto a saúde e a assistência social conseguiram se fortalecer, fundamentalmente, a partir da organização dos seus respectivos sistemas únicos, a mobilidade urbana, ao contrário, é caracterizada quase sempre pela fragmentação das suas ações dentro da mesma estrutura organizacional e pela dificuldade de integração com as demais áreas do mesmo ente federativo, o que acarreta sérios prejuízos para a implementação da política pública.
Além de contar com os seus sistemas únicos, saúde e assistência social também conseguiram assegurar algumas conquistas estruturais dentro do texto constitucional, que vão muito além do simples reconhecimento como direitos sociais: integrando o universo da seguridade social, essas duas áreas contam com fontes de financiamento expressas e asseguradas nas dotações de todos os entes federativos, sob a justificativa de que deve ser “financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios…”, conforme o que está estabelecido no Artigo 195 da Constituição de 1988, além da fixação de percentuais mínimos para aplicação dentro das dotações orçamentárias, como na área da saúde (vide Artigo 198).
Enquanto isso, a mobilidade urbana convive com a falta de recursos financeiros para implementar as ações elementares que estão previstas na política nacional e que poderiam contribuir para o acesso universal à cidade, como a restrição ao uso dos automóveis, a priorização dos modais ativos e do transporte público e a integração intermodal, como instrumentos para a efetivação da inclusão social.
A crise sanitária aprofundou a degradação dos sistemas de transporte público, baseados historicamente em uma sustentação, via de regra, a partir do financiamento único por intermédio dos seus usuários pagantes e escancarou a incapacidade econômica dos municípios brasileiros em aportar recursos para investir na infraestrutura dos modais ativos como alternativa para garantir o deslocamento com segurança das pessoas nessa fase crítica.
A defesa da criação do SUM parte de alguns pressupostos básicos para a mobilidade urbana: é um serviço essencial e um direito social assegurado na constituição; é dever do Estado; é instrumento para a garantia do direito de acesso à cidade e para a inclusão social; é reconhecida como indutora do desenvolvimento urbano e estruturadora do território a partir de um Estado com organização, hierarquização e capacidade de integração e gestão da política.
No SUM, o Estado assumiria a obrigação de assegurar recursos orçamentários e financeiros mínimos para o desenvolvimento das ações de mobilidade, a partir da previsão legal em suas dotações anuais, reforçando o princípio básico da corresponsabilidade e do cofinanciamento por parte dos entes federados, com a alocação se dando nos respectivos fundos de mobilidade e as transferências intergovernamentais ocorrendo de forma direta via fundo a fundo. Além dos recursos originários de seus orçamentos, para os fundos também seriam direcionados todos as receitas decorrentes de outras fontes, como, por exemplo, aquelas obtidas por intermédio da implementação dos instrumentos de gestão previstos na Lei n.° 12.587/2012.
O SUM asseguraria os canais formais para a participação da sociedade no processo decisório através da instituição dos conselhos municipais, estaduais, distrital e nacional de mobilidade urbana, que também contarão com a representação do poder público e de trabalhadores, operadores e prestadores de serviço no processo de construção da política.
Outro avanço proposto pelo SUM se daria no âmbito da atuação dos gestores públicos de mobilidade urbana. As entidades de representação dos dirigentes municipais e dos estaduais de mobilidade urbana não possuem instrumentos para incidir diretamente sobre a política nacional. No Sistema Único essas representações passariam a integrar a instância de pactuação e de deliberação da política, juntamente com os entes federados, dentro das comissões intergestores bipartite e tripartite, onde decidiriam sobre as questões técnicas, operacionais, financeiras e administrativas da gestão compartilhada e sobre as diretrizes em todas as esferas, entre outras atribuições.
No SUM as conferências seriam espaços para a definição dos eixos e das diretrizes da política de mobilidade urbana, em processo de construção colegiada; haveria comando único em todas as esferas; a responsabilidade superior na gestão seria do Estado; o sistema seria organizado para não haver sobreposição de ações e estas seriam implementadas de forma integrada.
O SUM parece ser um sonho distante, mas talvez seja o caminho mais adequado para se garantir a estruturação da mobilidade urbana como política pública de responsabilidade efetiva do Estado. Sugere-se que o primeiro passo para começar a avançar esse processo seja a encampação desse projeto pela Frente Parlamentar Mista do Transporte Público, que poderia assumir a responsabilidade pela condução de um grande debate em todo o país, patrocinando a realização de audiências públicas em todas as capitais, mas também pelas universidades, pela Frente Nacional de Prefeitos, pelo Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Públicos de Mobilidade Urbana, pela Associação Nacional de Transportes Públicos, pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana e pela sociedade, para se estabelecer as articulações e os apoios necessários que possam garantir a aprovação do projeto de criação do Sistema Único de Mobilidade Urbana.
Por Wesley Ferro Nogueira é economista, com pós-graduação em Gestão de Micros e Pequenas Empresas, em Marketing e Gestão Pública; foi consultor da Unesco, do PNUD e da FAO no Governo Federal; foi Técnico de Complexidade Gerencial no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; atualmente é Secretário-Executivo do Instituto MDT e colaborador no Projeto “Pensar o Transporte Público na Cidade Planejada para o Automóvel”.