Jurandir Fernandes – Serviços baseados em tecnologias inovadoras requerem mudanças na legislação e nos modelos de contrato

1 jan 2018

Há 12 anos, em seu congresso bienal realizado em Madri, Espanha, a União Internacional de Transportes Públicos (UITP), que completava então 120 anos de atividades, confirmou a criação de sua Divisão América Latina, que passaria atuar ao lado de outras regionais ao redor do mundo. Hoje, a UITP conta com 14 regionais.

O doutor em engenharia e, na época, professor da Universidade Estadual de Campinas, no Brasil, Jurandir Fernando Ribeiro Fernandes, então secretário de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo e presidente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), participou diretamente do processo de estruturação e instalação da Divisão América Latina, com escritório em São Paulo (BRA), e acompanhou seus primeiros passos,passando a contribuir com sua evolução.

No final de 2016, Jurandir Fernandes foi eleito presidente da Divisão América Latina, cargo que assumiu em maio 2017, durante o congresso da UITP realizado em Montreal, no Canadá. Sua experiência no setor é multifacetada: além de atuar na Universidade, dirigiu a Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas (EMDEC), ajudou a fundar o Fórum Paulista de Secretários e Dirigentes Públicos de Mobilidade Urbana, foi diretor-geral do Departamento Nacional de Trânsito do Brasil e, como já citado, atuou como secretário de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo, por quase dez anos, em duas ocasiões (entre 2001 e 2006 e entre 2011 e 2014).

Nesta entrevista, ele fala da atuação da UITP em nível global e na América Latina, sobre a importância de ampliar o envolvimento das autoridades da região nos debates acerca da mobilidade urbana e de haver maior atenção às mudanças no comportamento, no estilo de vida e na própria demografia, já que a população latino-americana envelhece, estabelecendo novas requisições em seus deslocamentos urbanos. Ele sublinha especialmente a necessidade de haver a modernização da legislação, sobretudo para uma compreensão adequada de modalidades inovadoras de negócio em mobilidade urbana, baseadas em novas tecnologias que se vão consolidando. Por Alexandre Asquini.

Mobilitas – Como atua a UITP em todo o mundo e na América Latina?

Jurandir Fernandes –A União Internacional de Transportes Públicos (UITP) foi criada em 1885. Hoje, indo para 133 anos de existência, tem sua sede em Bruxelas, na Bélgica, e conta com 1.500 companhias associadas e aproximadamente 18 mil membros de 96 países. A entidade possui 14 regionais em todas as partes do mundo, sendo uma delas a nossa Divisão América Latina, criada em 2005, no congresso da UITP realizado em Madri.

Mobilitas – Em comparação com o tempo de atividade da entidade mãe, a Divisão América Latina é bastante jovem.

Jurandir Fernandes – Sim, mas vem evoluindo muito bem. No começo, a Divisão América Latina contava com apenas sete membros; hoje, possui quase 80 entidades associadas, com mais de quatro mil pessoas cadastradas. Como as outras divisões regionais da UITP, também a Divisão América Latina propicia um espaço adequado ao debate das questões voltadas para a mobilidade. Além de reproduzir, como as outras regionais, as comissões de trabalho e de estudos estruturadas na sede da UITP,aos poucos, a Divisão América Latina foi estabelecendo espaços próprios de debate. Seus fóruns estão se constituindo como referência no setor. Gosto de mencionar o caso dos encontros de ITS – Intelligent Transport Systems (Sistemas Inteligentes de Transporte), que ocorrem todos os anos como parte das Semanas UITP América Latina, que também já se tornaram tradicionais.Neste momento, estamos trabalhando na estruturação da 5ª Semana UITP América Latina, prevista para março de 2018, na cidade de São Paulo. Em breve, poderemos fornecer informações mais detalhadas sobre esse encontro.

Mobilitas – O que a UITP e a UITP – Divisão América Latina têm a oferecer para as empresas, entidades e autoridades na região?

Jurandir Fernandes –Desde sua origem, a UITP busca a integração dos principais atores ligados aos transportes públicos. Em fins do século 19, seus fundadores foram os operadores de bondes de diversos países europeus. Hoje, a entidade congrega todos os modais de transportes de passageiros urbanos de quase uma centena de países. A UITP abre espaço para que todos exponham seus pontos de vista no que diz respeito aos problemas e avanços que ocorrem no setor. Muitos são os problemas em comum. Muitas são as soluções já encontradas.

Mobilitas –O senhor crê que a Divisão contribua efetivamente para a integração latino-americana?

Jurandir Fernandes – Tenho explicado que no âmbito da Divisão América Latina o processo de integração tem acontecido de forma bastante concreta, sobretudo por meio do trabalho das comissões, nos encontros, congressos e seminários e, de modo especial, através das publicações, que disseminam os resultados de todos estes debates e estudos.

Por intermédio do portal global da UITP, no qual a Divisão América Latina tem sua página, os participantes das comissões latino-americanas, os membros regionais e os membros em geral se organizam em redes temáticas ou regionais.

Este também é um aspecto que demonstra a evolução da Divisão América Latina. Ao contrário do que ocorria até uns quinze anos atrás, observamos um processo concreto de integração; todos os anos, os membros da Divisão América Latina realizam dezenas de reuniões on-line e posso assegurar que hoje nos conhecemos mutuamente na América Latina e trocamos ideias com uma frequência que antes não havia.

Mobilitas – Com que plataforma o senhor assumiu a presidência da Divisão América Latina?

Jurandir Fernandes –Nossa proposta tem um ponto central, que é buscar aumentar a participação das autoridades latino-americanas, de seus gestores públicos, de seus agentes ligados à mobilidade – sejam da administração pública direta ou de empresas públicas ligadas aos transportes. O setor privado tem comparecido mais frequentemente às diversas atividades agendadas pela Divisão América Latina, mas as dificuldadesfinanceiras têm imposto obstáculos à participação dos agentes públicos. Estamos nos esforçando para mostrar a todos que podemos realizar trabalhos conjuntos sem despesas com deslocamento e estada, justamente por meio dos canais de telecomunicação.

Mobilitas –Levando em conta esse propósito e outros desafios, como o senhor descreveria esses primeiros meses à frente da Divisão América Latina?

Jurandir Fernandes – Seguramente, consolidamos o que discutimos no Congresso da UITP realizado em maio de 2017 em Montreal, Canadá, sobre as grandes tendências das questões ligadas à mobilidade urbana. Apesar das dificuldades econômicas que já mencionei, foram realizados diversos seminários e visitas técnicas em São Paulo, Buenos Aires, Rosário, Toronto, Nova York e Montreal, sempre com bom engajamento. Houve dezenas de encontros técnicos presenciais e on-line e publicamos relatórios com recomendações, o que também tem permitido a disseminação de novos conhecimentos eanálises a respeito das principais tendências tecnológicas no setor. Os resultados práticos de tudo isso tem sido muito animadores!

Mobilitas – Há uma preocupação em promover novos formatos de interação?

Jurandir Fernandes – Sem dúvida. Operamos como catalisadores de ‘hackathonas’ de sucesso – duas no Brasil,uma na Argentina e outra no Chile.E com apoio das organizações locais. No Brasil, para a realização das ‘hackathonas’, tivemos o apoio da Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU), vinculada à Secretaria de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo; do Instituto Superior de Inovação e Tecnologia (ISITEC), mantido pelo respeitadíssimo Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo, e da Metra, empresa que opera o Corredor ABD, um sistema segregado de transporte por ônibus muito bem avaliado pela — população, interligando as Zonas Sul e Leste da cidade de São Paulo, atravessando quatro importantes municípios da Região Metropolitana.

Outro ponto importante foi a criaçãoda Comunidade Metropolitana UITP América Latina de Inovação em Transporte Público cujo objetivo é o de abrir uma plataforma de colaboração entre os envolvidos com a mobilidade urbana. O tema ‘open data’ é um dos principais debatidos pela comunidade do nosso setor. Os primeiros resultados práticos já surgiram com grandes gestores públicos anunciandoa abertura de seus dados operacionais. Depois de algumas reuniões on-line, realizamos em dezembro de 2017 uma reunião presencial com mais de 130 pessoas, em São Paulo.

E eu não poderia deixar de mencionar que um dos programas de maior sucesso da Divisão da América Latina da UITP tem sido o concurso de Melhores Práticas: Promoção e Comunicação. Foram 46 os inscritos de sete países latino-americanos. Os vencedores apresentaram-se em Montreal durante o Congresso Mundial da UITP.

Mobilitas – A Divisão América Latina reúne-se anualmente em uma assembleia. Qual o principal resultado da assembeia de 2017?

Jurandir Fernandes – É verdade. Na Assembleia da Divisão América Latina em 2017, que aconteceu em outubro, na Argentina, criamos na cidade de Rosário, sede do encontro, um Escritório Regional permanente, que servirá de reforço às nossas atividades naquele país. Nessa mesma assembléia, foi aprovado o Manifesto de Rosário. Veja matéria sobre o Manifesto 

Mobilitas – Ao longo deste ano, o senhor tem reiterado um alerta: as novas formas de economia requerem novos modelos de contrato formas diferenciadas de regulamentação, para evitar o que chamou de ‘zonas cinzentas’.

Jurandir Fernandes –É evidente que estão ocorrendo mudanças no comportamento e no estilo de vida dos latino-americanos, que moram justamente em uma das mais urbanizadas regiões do planeta. Milhões de pessoas estão conectadas, principalmente através de smartphones. A mudança do contexto demográfico também afetará cada vez mais o perfil da mobilidade urbana; populações mais idosas requererão atenção dos gestores públicos e dos mercados. A mudança de comportamento dos jovens da ‘Geração Z’, nascidos entre 1995 e 2010, a primeira geração nascida em um mundo on-line e móvel, requer mais compartilhamento e menos posse de veículo para se deslocar. Pensam em mobilidade como um serviço – MaaS: Mobility as a Service – e não em ter um carro só para isso.

Precisamos estar atentos a essas mudanças. Novos serviços surgem a todo momento, oferecidos por novos equipamentos, novas tecnologias e novos negócios. Até 2030, os carros elétricos e com muita capacidade de autonomia farão parte do nosso dia a dia. Muitos países já fixam datas para o fim da produção do motor a combustão para os carros.O futuro aponta para conectividade, eletrificação, veículos autônomos e prestação de serviços. É uma corrida contra o tempo. Os dinossauros da indústria automobilística serão extintos dentro de 20 anos, caso insistam em continuar a fazer novos lançamentos baseados em pequenas bobagens, como novas cores, novo layout, porta malas maior…

Mobilitas –O senhor tem afirmado ser necessário atrair as autoridades para o debate técnico e tecnológico, caso contrário, continuará a mesma situação: técnicos falando para técnicos. E que é preciso influenciar os principais dirigentes.

Jurandir Fernandes –Imagine tudo isto acontecendo com os gestores públicos e os empreendedores amarrados em legislações do século passado. Leis arcaicas controladas por dezenas de instâncias institucionais envelhecidas e sobrepostas. E o pior: as autoridades públicas conduzidas por governantes não estadistas, em sua grande maioria mirando o curto prazo,as próximas eleições. É espantoso ver novas licitações para a concessão de transporte público sendo lançadas com os mesmos princípios de décadas passadas. A população brasileira, com seus 200 milhões de smartphones, sai em busca do transporte sob demanda e encontra um Estado tentando salvar taxistas da velha guarda brandindo suas licenças cartoriais adquiridas no século passado.

O Brasil, por exemplo, não consegue fazer reformas básicas há décadas. Não se desburocratiza. Bate recordes mundiais negativos em questões relacionadas ao ambiente de negócios. Imagine então se estes negócios forem novos!  Aqueles que não conseguirem entender o sucesso do Uber, 99, Cabify, AirBnb, Spotity ou do Netflix não perceberão que hoje o que se deseja é comprar um serviço e não um bem material. A viagem e não o carro, a música e não o CD, o filme e não o DVD.

FONTE: Mobilitas

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