De parcerias a integrações destas startups, o sistema financeiro se prepara ao incorporar serviços, facilitar processos e responder aos clientes de forma ágil
Transformação digital nos meios de pagamento e transações monetárias foi acelerado no período de crise
O processo de transformação digital nos meios de pagamento e transações monetárias ganhou aceleração na incorporação das novas tecnologias sem precedentes em razão da pandemia. Usuários até então com alguma resistência se renderem à utilização de serviços remotos. É neste contexto, de um sistema financeiro pós-covid muito mais digital, com implantação do open banking e do sistema de pagamento instantâneo (PIX), pelo Banco Central (BC), que as fintechs devem ganhar clientes, volume de negócios e crescer em presença no mercado também com parceria com bancos.
“O momento é fértil para as fintechs, que são ágeis e têm muita facilidade em se adaptar a novos cenários”, diz Diego Perez, diretor-executivo da Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs), registrando, contudo, que há desafios importantes. “O capital de risco sempre está presente, tem muitas fintechs recebendo investimentos, mas o funding para acompanhar a demanda maior dos clientes é mais complicado.”
Perez propõe uma flexibilização das regras instituídas pelo BC em 2018, ao criar a Sociedade de Crédito Direto (SCD) e a Sociedade de Empréstimo entre Pessoas (SEP), e permitir às fintechs captarem recursos por instrumentos como recebíveis e debêntures. “Muitas fintechs não atingem, por exemplo, a necessidade de um capital social mínimo de R$ 1 milhão”, afirma.
Segundo a ABfintechs, hoje 27 fintechs estão enquadradas como SCD ou SEP, pouco, perto de um total de 200 que são de crédito e meios de pagamento. O tema está em debate entre a associação e o BC. No total, o Brasil tem 700 startups financeiras no mercado.
O diretor-executivo da ABFintechs, ao tratar da dificuldade de pequenas e médias empresas em acessarem linhas de crédito durante a pandemia, destaca a importância das fintechs para auxiliar na redução dos processos burocráticos da operação. “As fintechs podem integrar esta cadeia, atuando em processos como avaliação de risco, garantias ou liberação, o que evitaria que os grandes bancos acumulassem pedidos de crédito”, comenta Perez.
É este um dos focos da Pontte, criada em 2019 pela Mauá Capital para atuar com home equity (a diferença entre o valor justo de mercado da propriedade e o saldo pendente de todos os ônus sobre a propriedade). A fintech participa de iniciativa do BNDES para estimular crédito para empresas de pequeno e médio porte que participem de cadeias produtivas maiores. “O BNDES vai coinvestir em fundos que tenham este foco e estamos participando do edital”, explica Marcelo Lubliner, CEO da Pontte. A fintech propôs ao BNDES um fundo de R$ 700 milhões. “Nós já tínhamos no planejamento atuar neste nicho, mas veio o edital e decidimos participar”, aponta o executivo.
Nestes meses de pandemia, a fintech percebeu uma mudança no perfil dos clientes que buscavam home equity. Antes, os recursos captados eram para algum sonho, projeto pessoal. Agora, na plataforma ganha espaço a pessoa física (PF), ligada à pessoa jurídica (PJ) que precisa de crédito para sobreviver. O tíquete médio das operações dobrou de R$ 200 mil para R$ 400 mil. Em volume de recursos, a carteira que antes da pandemia era 40% PJ, agora chega a 70%.
Outra fintech que acelerou seu crescimento neste ano é a Transfeera, plataforma para automação das rotinas de pagamentos das empresas e validação de contas. A pandemia fez crescer o grupo de empresas de delivery com quem a Transfeera trabalha. “Com o produto Conta Certa, identificamos inconsistências em uma ordem de pagamento, informamos nosso cliente e, se ele preferir, nós mesmos corrigimos”, explica Guilherme Verdasca, CEO e fundador da Transfeera.
O produto Validação ganhou espaço após iniciada a pandemia entre os clientes de delivery, que saltaram de 4 para 10, e incluem nomes como ifood e Rappi. Representava 30% do faturamento e hoje chega a 50%. Só em abril, foram processados 260 mil pagamentos, ante uma média de 70 mil mensais pré-pandemia. No ano passado, a fintech cresceu 10,5% ao mês, com mais de R$ 1,5 bilhão movimentado.
No portfólio da Transfeera, há também gigantes da indústria como Unilever, Kimberly-Clark, Whirpool e General Mills. A perspectiva, destaca Verdasca, é de manutenção do desempenho ao longo do ano pela necessidade crescente de modelos que previnam fraudes. A Transfeera está sendo auditada pelo BC para participação direta no PIX. Na lista do BC, de 16/6, 980 empresas, não apenas do setor financeiro, estavam em processo de análise para ingressar no novo sistema de pagamento instantâneo. Saiba mais sobre o PIX neste painel especial do CIAB Live 2020.
APROXIMAÇÃO DOS BANCOS
No Santander, o movimento de aproximação com as fintechs, que ganhou força nos últimos dois anos, deve acelerar. “Temos um fast track, criado no segundo semestre do ano passado, para avaliar e contatar novas fintechs de forma ainda mais ágil”, comenta Tomas Mariotto, superintendente de Negócios Digitais do banco. A chegada do open banking e do PIX são duas ações que, na visão de Mariotto, vão trazer novos players para o mercado e estimular parcerias. “É a economia de APIs abertas para quem quiser consumir. Vamos todos participar de novos arranjos e, claro, os bancos se preparam tanto para defesa quanto ataque.”
O movimento mais recente do banco foi a integração de duas fintechs que já estavam em seu ecossistema, Superdigital e Sim. Elas se uniram para ampliar a oferta de crédito à pessoa física com foco nas classes C e D.
A Sim é a responsável pela análise do crédito e a Superdigital disponibiliza o aplicativo por onde deve ser contratado o serviço. A Superdigital desde 2015 pertence ao ecossistema de startups do Santander. “Neste momento de covid-19, todas nossas iniciativas têm sido muito mais ágeis. A Superdigital e a Sim foram integradas agora em junho”, disse Mariotto.
Outra iniciativa do Santander, do final do ano passado, foi a criação da emDia, que nasceu inicialmente para renegociar dívidas dos clientes, mas logo avançou em parcerias que incluem empresas como Viavarejo e Vivo. “Não temos restrição, podemos atender qualquer setor, incluindo outros bancos”, comenta Mariana Perez Gatt, CEO da emDia.
A empresa, que só aborda devedores por canais digitais como SMS, e-mail, redes sociais e, em breve WhatsApp, tem 1,5 milhão de clientes na base e atua em um modelo de autosserviço, com o cliente fazendo suas simulações na plataforma. Após a pandemia, a emDia relata um aumento na procura de empresas, e a meta é fechar o ano com 4 milhões de clientes e 14 empresas integradas na base. “Não mudamos em nada a previsão, que era bem arrojada. O momento é bom para buscarmos interessados na cobrança digital”, comenta a CEO. Em 7 meses de operação, a emDia já renegociou R$ 400 milhões em dívidas.
Outra movimentação importante neste ano foi a compra da fintech Fliper pela XP Inc. Os fundadores da Fliper, plataforma de consolidação automatizada de investimentos, permanecem com participação na empresa e 100% de independência na gestão do negócio, colocada em contrato. Fundada em 2017, a fintech já mapeia mais de R$ 10 bilhões em investimentos em sua plataforma que tem 80 mil usuários ativos.
“Os negócios digitais vão muito bem nesta crise, todos demandam crédito e informações financeiras”, comenta Renan Georges, sócio-fundador da Fliper. A taxa média de crescimento fica em torno de 20% ao mês. Até o final do ano, a Fliper estará acessível também via plataforma XP. “O que faria em dois, três anos, com o acordo com a XP fazemos em um.”
O cliente XP, na plataforma da Fliper, poderá consolidar os investimentos que tenham também em outras corretoras, em um só ambiente. “É uma espécie de GPS financeiro com ganho para o cliente e que forçará todos a ofertarem os melhores produtos”, comenta Georges. A meta é crescer cinco vezes neste ano, com 400 mil usuários ativos na plataforma.
No Fitbank, criado há cinco anos para a gestão de fluxo de pagamentos de empresas, há o interesse em parcerias com bancos, mas não de uma venda da operação, comenta Otavio Farah, CEO e fundador da fintech. No dia 14 de julho, após a entrevista de Farah à noomis, foi anunciado um aporte do J.P. Morgan no Fitbank para a expansão do portfólio de produtos e sua ampliação internacional.
O valor não foi revelado e a participação do J.P. Morgan será minoritária na fintech. “Conversamos com bancos estruturando parcerias estratégicas, é o que nos interessa”, comentou o CEO do Fitbank, afirmando que as fintechs por terem uma estrutura enxuta ganham no processo decisório. “Bancos têm credibilidade, volume e clientes, enquanto as fintechs são mais ágeis e atuam melhor em determinados nichos.”
Inicialmente, o Fitbank atendia empresas preocupadas com o fluxo de pagamento, mas identificou um potencial junto ao mercado financeiro. Hoje, atende adquirentes, bancos e mesmo outras fintechs, que têm “problemas parecidos com as empresas, mas em uma escala bem maior”. O setor financeiro já responde por 60% do volume movimentado pelo Fitbank.
Sobre os efeitos da pandemia, Farah lembra que muitos nem cogitavam utilizar um app de banco, mas isto mudou [Veja a Pesquisa Febraban de Tecnologia Bancária divulgada durante o CIAB Live 2020]. “Nos bancos digitais que atendemos, percebemos um volume maior de transações, mas um tíquete médio menor, o que sugere novos clientes entrando na base.” O Fitbank, com 92 clientes na carteira, tem planos de se internacionalizar e até o fim do ano, afirma o CEO, estará com o planejamento montado, começando por América Latina e Estados Unidos. “Estamos perto de movimentar R$ 1 bilhão de transações por mês.”
AS INCORPORAÇÕES
Os efeitos indiretos da pandemia no setor financeiro também são destacados pelo superintendente-executivo do Departamento de Pesquisa e Inovação do Bradesco, Fernando Freitas. “Em 8 semanas, avançamos na digitalização e na forma como a sociedade atende suas necessidades na mesma proporção do que nos últimos 10 anos.”
O Bradesco informa que o next, seu banco digital, incorporou no primeiro semestre um milhão de novos clientes, chegando ao total de 2,7 milhões, sendo que 78% não eram clientes Bradesco. A perspectiva é fechar o ano com algo entre 3,5 milhões e 4 milhões de clientes.
O banco desenvolveu um book com mais de 70 soluções de startups do ecossistema inovabra para o cenário atual, com impactos nas seguintes áreas de negócios: saúde, RH, educação, logística, transformação digital, gestão, financeira e trabalho remoto. Atualmente, existem 31 fintechs alocadas no inovabra habitat, sendo 20 parceiras do banco.
No Banco do Brasil (BB), só nos últimos 90 dias foram acolhidos nos canais digitais 2,6 milhões de clientes. “Desatamos vários nós em tempo recorde. O aumento da adoção de meios digitais no Brasil é um fator bastante atrativo para as fintechs atuais e incentivará o surgimento de novas”, afirma Carla Sarkis, gerente-executiva de Negócios Digitais do BB. Sobre parcerias, ela cita especificamente oportunidades nos meios de pagamento que “ainda é um grande ponto de fricção na experiência do cliente, quase que diariamente”.
Para a executiva, iniciativas como open banking e PIX vão colocar os novos competidores em pé de igualdade para brigar com os grandes. “De qualquer forma, a transformação digital irá acelerar parcerias em todos os segmentos, não apenas em meios de pagamentos, e estamos nos preparando para esse cenário”, diz Carla, lembrando que a primeira parceria com fintech foi em 2017, com a Conta Azul, e depois se seguiram outras como BxBlue, Dotz e Bom pra Crédito. “O BB tem investido na construção de soluções em API para consumo próprio das empresas/fintechs, especialmente para auxiliá-las no processo de transformação digital.”
FONTE: Febraban